Há discos que soam como um diário íntimo, e há discos que parecem um manifesto. Acústico em Dois Atos, primeiro DVD da Cambirela, consegue ser os dois. Gravado em Palhoça (SC) – cidade que batiza a banda e serve de musa e cenário – o registro é um mergulho no chiaroscuro do grupo: alegria e melancolia se encontram na mesma intensidade, atravessadas por guitarras, baixo, bateria e, sobretudo, pela sanfona.
E é justamente a sanfona o coração pulsante do projeto. Em tempos em que o rock alternativo nacional ainda busca resgatar sua identidade, a Cambirela crava no peito a herança da música sulista, um território muitas vezes esquecido quando o assunto é rock. A sanfona, instrumento associado ao fandango, à tradição gaúcha e às festas do interior, ganha aqui papel de protagonista e não apenas de adereço. Ela dialoga com o violão de 7 cordas, se enrosca nas melodias elétricas e reconfigura o que entendemos como “acústico” no rock brasileiro.
O resultado não é uma caricatura regionalista nem um pastiche dos clássicos “Acústicos MTV”. É mais ousado. Ao revisitar canções do EP Nós (2023), o grupo cria novas camadas de sentido. “O Pedido”, por exemplo, ganha urgência e leveza, enquanto em “Vermelho Fogo” a sanfona quase duela com o violão, criando um contraste entre drama e luminosidade que lembra os melhores momentos do Los Hermanos em diálogo com o folk sulista.
Essa mescla entre rock alternativo pós-2000 e raízes regionais pode ser o grande trunfo da Cambirela. Se a estética do acústico é marcada pela introspecção e pela busca por “verdade”, a banda entrega justamente isso, mas com sotaque próprio. Palhoça não é apenas cenário: é território simbólico. O DVD foi gravado em espaços culturais da cidade, e a escolha é quase política – afirmar que um rock feito na periferia do circuito mainstream também tem peso, identidade e voz.
Na estrada desde 2019, os quatro músicos mostram em Acústico em Dois Atos não apenas maturidade, mas ambição artística. O disco não é só um “respiro” na carreira; é um passo em direção a um futuro onde a banda parece disposta a assumir que não precisa escolher entre guitarras distorcidas e sanfona, entre melancolia e alegria. Essa dualidade é a própria assinatura da Cambirela.
No fim, o DVD soa como um rito de passagem. Um ponto de encontro entre passado e futuro, raiz e modernidade, rock e tradição popular. A Cambirela, ao dar protagonismo à sanfona em meio a riffs e batidas de bateria, aponta um caminho ainda pouco explorado no Brasil: o de um rock que reconhece sua geografia, sua cultura e seu povo. E isso, convenhamos, é muito mais revolucionário do que parecer com qualquer gringo.