Autoficção radical transforma o corpo gordo em trincheira erótica e política, com ritmo aforismático e oralidade feroz
“Sinto a escrita como uma faca. É quase a arma de que preciso”, diz a epígrafe de Annie Ernaux que abre Porca Gorda e Jéssica Balbino a leva ao pé da letra. Seu livro é uma autoficção radical, visceral, que faz do corpo gordo um território insurgente, erótico e político. Publicado pela Barraco Editorial, Porca Gorda não pede licença: arromba a porta, senta à mesa com a bunda larga e cospe na sobremesa dos bem-comportados.
Jéssica Balbino escreve como quem viveu cada dobra, cada escárnio e cada gozo — e transformou tudo em ritmo. Seu texto não se enquadra em formas bem-comportadas: é oral, confessional, cortante e musical, como um funk explícito ecoando num ônibus lotado. A autora cria uma cadência própria, feita de frases curtas e contundentes, aforismos que fariam Nietzsche gozar, como se cada parágrafo fosse um soco ou uma gargalhada debochada no meio do sermão.
Ritmo, oralidade e gozo como política
O ritmo do livro é marcado por uma oralidade crua e performativa, próxima de uma fala em microfone aberto: “Ando devagar. Rebolo mesmo. Livro na mão. Raba balançando. Escorro feito uma letra de funk explícita”.
Jéssica Balbino fala alto, ri escancarado, goza com as coxas fazendo barulho e exige que o leitor a olhe nos olhos.
Essa oralidade não é ornamento; é método. Ao recuperar o gesto de contar, sussurrar, berrar e rir em voz alta, a autora inscreve no papel uma corporalidade que foi sistematicamente apagada. O texto pulsa como um corpo em ato: suado, indecente, barulhento. É literatura feita de saliva e rancor.
Corpo radical, escrita insubmissa
Em Porca Gorda, o corpo não é metáfora — é matéria. A narrativa percorre infância, adolescência, sexualidade, religião, violência, amor e vingança com uma coragem rara: “Meu corpo é o livro. E eu sou a autora de cada dobra”.
Jéssica Balbino não oferece superação nem autoajuda. Recusa a gramática do “antes e depois” e desmonta os clichês do body positive. O corpo gordo, aqui, não é templo: é trincheira. É palco de gozo, raiva, fé e desobediência. Um corpo que rebola como quem invade um banco, que reza com as coxas abertas, que escreve com lava e sangue.
Entre o íntimo e o estrutural
A radicalidade do texto está em conectar o íntimo ao estrutural. A autora expõe como a gordura é lida socialmente — da infância humilhada à adolescência medicada, da igreja ao sexo às escondidas — e transforma isso em denúncia sem perder a dimensão poética. Sua escrita lembra La cerda punk: uma recusa feroz à domesticação.
Ao mesmo tempo, Jéssica Balbino não se poupa: expõe suas dores, desejos e contradições sem concessões. “Não quero ser sua superação. Quero ser lida como fúria. Quero ser entendida como fogo”.
Um clássico instantâneo
Porca Gorda é um livro desconfortável e libertador. Perturba porque revela o que muitos preferem esconder: o corpo que não cabe, que deseja, que goza apesar. É literatura escrita com gordura quente, sangue velho e batom borrado – como define a própria autora – e que se inscreve no cânone da autoficção radical ao lado de Ernaux e Louis, mas com a força suada e insurgente do Sul global. Um baita livro. Muitíssimo bem escrito. Um clássico instantâneo da escrita do corpo no Brasil.